O lugar do analista

O LUGAR DO ANALISTA E O AMOR DE TRANSFÊRENCIA

 

Para poder analisar é preciso que o analista saiba o lugar que está sendo situado pelo analisando. Logo é da posição que lhe é dado pela transferência que o analista pode analisar, interpretar, cortar a sessão, enfim, intervir sobre a própria transferência. Quando procuramos um analista é porque creditamos a ele, algum saber que nos intriga, exatamente porque nos escapa. É por esse viés que o analista é colocado no lugar daquele que sabe. Lacan (1957) chama a quem é creditado o saber de o “grande Outro”, e ele funciona como referência para a nossa organização subjetiva, que é tecida pelo acesso a linguagem. É a essa suposição de saber no Outro que Lacan (1957), localiza como pivô do deslanchamento da transferência, via pela qual o analista vem encarar a função de sujeito suposto saber. No endereçamento ao analista, a transferência, vindo a ocupar o lugar do sintoma, está condicionada á pretensão de que um saber possa vir á tona, o saber que sustentou o sintoma. Espera-se que o analista questione e viabilize o acesso a esse saber.

Assim, a transferência não se reduz a mera repetição por ter seu acionamento vinculado à função do sujeito suposto saber. O que leva a repetição é a demanda de que o analista viabilize o acesso a esse saber. É esse pedido que leva a repetição de um caminho já trilhado nessa mesma direção, no qual o sujeito espera que um saber no Outro acene como via de salvação do real traumático.  É, portanto, a repetição do encontro com a falta, com o fracasso na realização dos desejos infantis, que estamos sempre a nos deparar, o que será trabalhado na transferência.

A transferência é a aposta de que há que existir um saber que virá dar conta dessa falta do encontro perfeito, desse furo presente na relação do sujeito ao Outro. Esse crédito dado ao Outro traz como efeito o amor. Na transferência, temos por um lado um apelo ao saber que advém da relação com a linguagem e, por outro, um apelo ao ser, que se configura como demanda de amor.  Demanda de vir encontrar sua consistência, o sentido do seu ser, pela via do amor. O fato de falarmos revela que estamos sempre nos dirigindo ao Outro. O modo como falamos, o modo como nos apropriamos das palavras e escolhemos as representações testemunha uma organização de nossa subjetividade que é comandada por este Outro, por esse referente. Logo é o Outro que vigora no que temos de mais intimo, o que faz com que sejamos um pouco desconhecido de nós mesmos. 

Diante dos fatos aqui descritos, deixamo-nos alienar por essa fantasia que constituímos de nós mesmos na tentativa de responder ao Outro, para melhor e para pior. Nesse caso, respondemos com a construção de uma fantasia que a fim de dar conta de responder ao enigma do desejo desse Outro por nós, aí sim nos alienamos, uma vez que esperamos por este. 

 

 

1.2 O DESEJO DO ANALISTA

 

O desejo do analista é um conceito inventado por Lacan, que não encontramos em Freud, para designar o desejo que move alguém em análise, particularmente no período do final de análise a tornar-se analista. Esse mesmo desejo é o instrumento com o qual o analisante que se tornou analista vai operar, por sua vez, na condução do tratamento analítico de seus analisantes. É o desejo do analista que se encontra na base da ética da psicanálise, pois é o desejo correlato á ação do analista em sua clínica. O desejo do analista é um lugar do qual estamos fora sem pensar nisso, ou seja, é um lugar que está fora da cadeia da linguagem, estando por tanto do lado do não penso, logo está fora do inconsciente.

A demanda do neurótico dá o ponto em que o desejo do analista não é articulável. Há, portanto uma diferença estrutural entre o desejo do analista e o desejo de ser analista. Este último equivale a uma demanda de qualificação profissional, não sendo, portanto diferente da demanda do neurótico que é demanda de amor, demanda de reconhecimento.

O desejo inconsciente é articulado á lei: a lei e o desejo recalcado são a mesma coisa, uma vez que aquilo que se desejou passou pela lei do recalque. A função paterna uniu o desejo à lei, logo o neurótico só pode desejar a partir do desejo desse Outro que o condicionou a lei do seu desejo que se apóia no Édipo. Já o desejo do analista não é equivalente á lei, não é edipianamente constituído, situando-se para além da lei. Esse desejo é representado por um amor sem limites é um almor (Lacan- amor de alma), pois está fora dos limites da lei, logo é regido por uma ética, ou seja, a ética do desejo. O desejo do analista não é desejo do Outro, pois advém do encontro com a não consistência do Outro, sendo correlata a ausência do Outro. É um desejo sem Outro: ele vem do lugar do desamparo.

Enquanto o desejo inconsciente é uma pergunta, o desejo do analista é uma resposta. O desejo do analista é um desejo para além da fantasia, que não se sustenta em nada: ele é lugar vazio que o analista oferece ao analisando, uma vaga para que aí possa instalar o desejo do analisante como desejo do Outro. O desejo inconsciente se articula com uma demanda de amor, de carinho, de afago. Já o desejo do analista está para além da demanda. O desejo do analista não é um desejo triste, conformado com a falta, não é a resignação do conformista, trata-se antes de um desejo que empolga, anima, vertendo o afeto para o âmbito do saber que ele enquadra, conferindo-lhe a conotação de um saber alegre, gaio saber.

O desejo do analista é o que o habilita a manejar a transferência para colocá-lo a serviço do trabalho analítico, e, portanto, vencer as resistências que tentam obstaculizar o processo, já que a transferência tem duas faces: facilitação e impedimento. Se o desejo do analista não estiver afinado com o trabalho, a resistência surgirá também do seu lado, por meio de uma transferência mal colocada por parte dele, e que o ensurdecerá para ESCUTAR as palavras que são ditas pelo analisando. Atuando sua própria transferência, o analista se coloca equivocadamente como sujeito, em vez de ser instrumento nesse processo, objeto, portanto.  É essa a resistência que melhor configura um obstáculo para a análise.

O analista em transferência não está em posição de simetria frente a seu paciente. Os dois não estão numa análise reciprocamente engajados como pessoa. O analista é pago para que se lembre disso. Alias o dinheiro que recebe é também uma compensação por sua abstenção subjetiva, recompensa por ter deixado de lado o eu. Ao contrario da contratransferência, que se refere á afetação da subjetividade do analista no contexto do trabalho clínico, o que é referido como desejo do analista diz respeito não á pessoa, mas à sua função. Trata-se da maneira pela qual o desejo do sujeito, por seu processo de análise, deu sua vez ao desejo do analista. É preciso que o analista ceda em seu desejo de sujeito ao exercício da função do analista, para que o desejo relativo a essa função possa operar no tratamento, livre dos entraves de sua subjetividade. Quando isso não acontece estamos na contratransferência. 

O Banquete de Platão demarca a maneira própria de o amor operar no processo analítico pela função do desejo do analista. Em seu discurso, Sócrates diz nada saber do amor, a não ser no que diz respeito à questão do desejo, e isso, veio a escutar da boca de uma mulher (Diotima). É nesse lugar cedido ao feminino, que começa a sua argumentação visando situar o que é o amor. Ele argumenta que o amor busca a beleza porque junto ao belo, o ser fecundante se dilata, engendra e produz. A beleza não é o objetivo do amor, mas é a via pela qual o homem, podendo acolher sua falta, faz-se criador.

E o que o analista tem haver com esse discurso?  Tudo. Essa abordagem do amor que o desloca da condição reducionista de dois fazer um, aponta outros modos de operar com ele. Evaporando, de certa forma, o objeto com o qual o sujeito tenta se colar, sem, entretanto tirado de causa, o analista descortina um universo bem mais amplo de possibilidades através de uma forma própria de se valer do amor no manejo da transferência. Quando o objeto, ou melhor, a fantasia que atrela o sujeito ao objeto, revela-se em sua inconsistência, o efeito da travessia dessa fantasia tende a absorver o objeto, logo, com esse trabalho empreendido na análise, espera-se que o desejo do analista convoque um campo relativo ao desejo de fazer, ou melhor, opere na direção em que o saber encontra-se vinculado a um saber fazer.

Quais os efeitos subjetivos dessa separação? Não é a toa que a postura do neurótico é de viver se queixando que falta isso ou aquilo, tentando localizar nas faltas o vazio imponderável que arisca arrebatá-lo da vida. Não percebendo que a queixa é uma condição narcísica, o neurótico passa a vida a esperar que o Outro lhe dê aquilo que lhe falta. Geralmente ele encontra quem responda a sua demanda de amor, no entanto, quanto mais o outro responde a demanda mais a queixa se acentua. O amor é uma via de resposta a essa demanda. Demando que o Outro vá ao lugar demandado para sustentar o meu desejo que ele não vá, pois só assim garanto o sucesso das investidas.

Não responder a demanda não é dizer não. O que a ansiedade daqueles que estão iniciando no oficio de psicanalista muitas vezes o leva a fazer. Em vez disso o analista deve aproveitar a questão para fomentar no sujeito à possibilidade de ele mesmo se intrigar com o que está pedindo, tentando buscar o que o move nisto no contexto da análise, e certamente para além dela. Espera-se que o analista intervenha, não a partir do sujeito que ele é, mas da função que ele sustenta. Para tal, não basta apenas uma mera abstenção subjetiva, mas sim uma experiência de dessubjetivação que é fruto de sua própria análise. Advindo do lugar de semblante do objeto que é causa de desejo para o sujeito que ele escuta o analista deseja que algo desse desejo possa ser demarcado em análise. Sua capacidade de intervir a partir desse objeto “a”, suportando encarnar isso que falta, é algo que é efeito da própria análise do analista. É preciso que ele tenha suportado a radicalidade dessa falta, com o qual pode fazer algo, para operar a transmissão dessa experiência. Sem isso ele não suportará a falta e se prestará equivocadamente a tentar obturá-la de alguma forma, seja a sua, seja a dos outros, isso é fazer caridade, achando que é para o bem do outro. Enfim é preciso que o analista descaridize. (Lacan)