A escuta da clínica

A ESCUTA DA CLÍNICA

A escuta da clínica impõe um conjuntos de questões que devemos observar. Em primeiro lugar, a escuta da clínica está associado ao tempo lógico, à transferência e a lógica do significante. Essas categorias são todas inseparáveis do conceito de inconsciente. Outro ponto importante que se articula a escuta da clínica remete sempre para o fato do analista já ter se escutado através da escuta do analista que o escutou em sua análise pessoal. Portanto, a escuta da clínica exige que o pretenso clínico abra mão do mutismo subjetivo que o inviabiliza de escutar a voz do seu inconsciente.

Por que a escuta da clínica está associado ao tempo lógico? Porque para o tempo lógico o inconsciente é constituído por atemporalidades. Logo, a lógica do tempo inconsciente desconsidera a cronologia do tempo do relógio. Com a escuta da clínica, o tempo histórico do sujeito ganha Outra lógica, e essa lógica só é concebível sob transferência.   

Ivan Correia (1997) tem uma forma muito particular de abordar essa questão.

Vejam o que é que fez com que Freud descobrisse a psicanálise, senão o nível, o plano em que Freud se colocou em relação à escuta. Histéricas nos consultórios dos neurologistas havia aos montes naquela época de histéricas no Salpetriére. Mas foi Breuer e depois Freud que tiveram essa escuta eficiente e diferenciada para descobrir alguma coisa, porque todo mundo estava recebendo histérica e não conseguia descobrir. Quer dizer, em que nível Freud escutou esse discurso linear de banalidades ou de coisas sérias que traziam os analisantes, para descobrir esses famosos caminhos, essas leis do inconsciente, se não pelo fato de ter escutado de uma forma particular? (1997, P. 44)

Correia (1997) mostra que o particular da escuta da clínica está associado à singularidade da escuta do analista. Desse modo, o que singulariza a escuta do analista é o tratamento que ele dá a palavra do analisando. O paciente chega ao consultório se queixando que o seu corpo lastreia uma série de marcas corporais que o inviabiliza de sustentar a própria sexualidade com o parceiro sexual. O paciente toma a palavra e fala: ainda mais essa do corpo. Assim enuncia a paciente. Ao escutar essa enunciação, devolvo o seu dito, indagando-lhe: quem é essa do corpo? Com a escuta, faço surgir essa mulher, a Outra mulher que se revela pela via dos significantes corporais. Mostro para a paciente que os hieróglifos corporais são significantes que a representam para outros significantes.

Desse modo, a escuta do analista não se vale do cotidiano do sujeito e de sua história temporal. Ao escutar, o analista põe em cena a Outra cena (inconsciente), pois com  a escuta analítica, o analista mostra para o analisando que sua verdade está situada para além do que ele escuta. A fantasia é uma espécie de fiador daquilo que Freud denominava realidade psíquica. Ao escutar pacientes histéricas, Freud se convenceu de que a realidade do inconsciente é subjetiva. Freud se convence dessa hipótese no instante em que comunica não acreditar em suas neuróticas (Carta 71), pois percebera que aquela história de sedução advinha da fantasia de ser seduzida pelo atleta peludo. Foi a partir dessa mentira que se tornou verdade que a escuta da clínica se singulariza.

No trabalho da clínica a paciente toma a palavra para falar do encontro visual que teve com a mulher no qual é esposa do homem que ela mantém um relacionamento conjugal clandestino. Ao ver a esposa do amante à analisanda diz.

Quando eu olhei aquilo me perguntei. Como, como pode eu fazer isso. (Paciente) Prontamente lhe respondi: Aquilo (Kg). É por isso que você me diz, como, como, eu como desenfreadamente até me fazer mal.(analista) Ver aquilo é o significante que revela a outra cena que está por traz do corpo da mulher traída. Escutar paciente é um oficio que mostra que a realidade subjetiva dos nossos pacientes é constituída por uma gramática emblemática, pois o analisando não sabe que o objeto de sua fantasia é sempre uma encenação, um livro de bolso que o paciente carrega sem se dar conta. Portanto, o analista com sua interpretação re-vela que a fantasia é algo que divide o sujeito causando a sua divisão, pois o objeto da fantasia é ele mesmo.    

 A escuta da clínica aponta para essa realidade fantasiada pelo sujeito. A fantasia é como um romance televisivo que o analisando carrega consigo é tem acesso no momento em que quiser. Por isso, a fantasia é uma defesa do sujeito, pois com ela, o sujeito modela e remodela o mundo com fins de se proteger das agruras da realidade.

Desse modo, o analista entra em contato com essas cenas através da escuta transferencial. Ao revelar o seu teatro privado, o neurótico entra em contato com esse aparelho projetivo que projeta a sua história subjetiva. É nesse momento que analista se torna um telespectador silencioso que escuta os dramas, as tragédias e as alegrias que esse enredo cênico lança sobre a tela da fantasia. A voz do analisando cria essas imagens que ganham luminosidade através da escuta singular do analista. Enfim, escutar na clínica implica sempre a presença do Outro garantidor de um espetáculo em que o protagonista é autor e telespectador de si mesmo.